Vítima da Guerra ao Terror, canadense passou 12 meses preso na Síria após ser entregue por autoridades americanas, sob a acusação de terrorismo; inocentado, relembra seu "pesadelo"
RESUMO Maher Arar foi preso em 2002 no aeroporto JFK, em Nova York, ao fazer escala na volta das férias. Casado, com dois filhos, o engenheiro canadense nascido na Síria seria interrogado por suposto laço com a rede terrorista Al Qaeda. Acorrentado, posto em um avião e levado à Síria, sua rotina alternaria solitária e tortura. Nunca houve acusação formal. Solto após o Canadá intervir, provou-se inocente.
(...) Depoimento a
LUCIANA COELHO
DE WASHINGTON
A maior parte dos flashbacks que eu tenho é com o som das mulheres na cela ao lado e com o choro do bebê que estava lá com a mãe. Toda a vez que ouço um bebê chorar, ainda hoje, me lembro disso.
O resto é com a reação das pessoas enquanto eram torturadas. Mesmo no porão, quando a tortura era intensa, dava para ouvir. Algumas vezes nos levavam para o interrogatório e, enquanto você esperava sua vez, ouvia os outros sendo torturados.
Eu me lembro da tortura alheia, e é assim com muita gente nessa situação.
Minha única lembrança da minha é o começo: o interrogador entrava, mudo. Fazia um sinal para eu abrir a palma da mão, batia com um cabo, repetia com a outra.
Mas quando você está sozinho na cela, você tem todo o tempo do mundo para prestar atenção no que está acontecendo ao lado.
Por anos, minha mulher e eu tentamos evitar esse assunto com as crianças. Agora, porém, meus dois filhos já têm idade para perguntar.
Meu filho, hoje com 9 anos, tem muito medo quando eu saio de casa. Se saio à noite, quer saber aonde eu vou. Tem medo que eu não volte.
Minha filha lida melhor, talvez porque tivesse seis anos quando isso aconteceu -meu filho tinha meses. Ele ainda me pergunta como era a prisão, o que acontecia lá.
Esse é o tipo da coisa que as pessoas não entendem.
Vejo comentários sobre a minha história na internet, gente que diz "queria eu ter sido enviado para a Síria por um ano, para poder receber milhões em indenização".
Ou "foi só um ano". As pessoas não percebem que dura sua vida toda.
Quando voltei ao Canadá [em 2003], enfrentar o inquérito, fazer campanha [para levar o assunto a debate] foi, muitas vezes, tortura maior do que o que passei na Síria.
Um ano, ok, termina. O resto continua. Os primeiros cinco anos foram um pesadelo, um pesadelo. A melhor forma de descrever é "inferno".
Não sei quando vai passar.
E o estrago que isso faz na sua reputação, você convive com ele todos os dias. Mesmo quando as coisas não têm base em fatos, psicologicamente, você está destruído, sempre vai ver o mundo dessa prisão que é ter sido acusado de terrorismo.
PRECONCEITO
As pessoas às vezes acham que, porque o inquérito provou que eu era inocente, posso apertar um botão e mudar de fase. Na real, eu também acreditava nisso, ingenuamente. Não é assim.
Vou ser honesto: a minha relação com as pessoas hoje é de amor e ódio.
Recebo apoio, mas são só palavras. Pensam duas vezes antes de me contratar. Dói. Sempre me identifiquei pelo meu trabalho, minha carreira era meio mundo para mim.
No começo, vivemos de assistência social -algo humilhante para um casal que estudou. Depois, minha mulher arrumou um emprego.
Já eu perdi a esperança, apesar de ter qualificações, apesar de minha área [engenharia de comunicação] estar em expansão. Decidi voltar a estudar. Acabei o doutorado há um ano e meio.
Mas não quero mergulhar na depressão de procurar emprego de novo. Por ora, com a indenização, a gente se vira. Toda vez que eu era rejeitado, ficava mal, sem comer, sem dormir, sem falar. Não gosto nem de lembrar.
É isso que a minha vida virou. A minha, da minha mulher, dos meus filhos.
Recebi um pedido de desculpas do governo canadense, mas nunca do americano. E nunca houve uma acusação formal contra mim.
No ano passado, comecei uma revista [sobre segurança e direitos civis], a "Prism".
Não culpo os ativistas por estarem descrentes. O trabalho deles na última década foi enorme, e as mudanças parecem tão pequenas, mesmo sob [Barack] Obama.
Mas eu acredito em pessoas, não em governos. Quem diria, um ano atrás, que a população no Oriente Médio ia se levantar?
Esquecem que ditaduras não nascem da noite para o dia. Somos nós que temos de fazer valer nossos direitos.
RESUMO Maher Arar foi preso em 2002 no aeroporto JFK, em Nova York, ao fazer escala na volta das férias. Casado, com dois filhos, o engenheiro canadense nascido na Síria seria interrogado por suposto laço com a rede terrorista Al Qaeda. Acorrentado, posto em um avião e levado à Síria, sua rotina alternaria solitária e tortura. Nunca houve acusação formal. Solto após o Canadá intervir, provou-se inocente.
(...) Depoimento a
LUCIANA COELHO
DE WASHINGTON
A maior parte dos flashbacks que eu tenho é com o som das mulheres na cela ao lado e com o choro do bebê que estava lá com a mãe. Toda a vez que ouço um bebê chorar, ainda hoje, me lembro disso.
O resto é com a reação das pessoas enquanto eram torturadas. Mesmo no porão, quando a tortura era intensa, dava para ouvir. Algumas vezes nos levavam para o interrogatório e, enquanto você esperava sua vez, ouvia os outros sendo torturados.
Eu me lembro da tortura alheia, e é assim com muita gente nessa situação.
Minha única lembrança da minha é o começo: o interrogador entrava, mudo. Fazia um sinal para eu abrir a palma da mão, batia com um cabo, repetia com a outra.
Mas quando você está sozinho na cela, você tem todo o tempo do mundo para prestar atenção no que está acontecendo ao lado.
Por anos, minha mulher e eu tentamos evitar esse assunto com as crianças. Agora, porém, meus dois filhos já têm idade para perguntar.
Meu filho, hoje com 9 anos, tem muito medo quando eu saio de casa. Se saio à noite, quer saber aonde eu vou. Tem medo que eu não volte.
Minha filha lida melhor, talvez porque tivesse seis anos quando isso aconteceu -meu filho tinha meses. Ele ainda me pergunta como era a prisão, o que acontecia lá.
Esse é o tipo da coisa que as pessoas não entendem.
Vejo comentários sobre a minha história na internet, gente que diz "queria eu ter sido enviado para a Síria por um ano, para poder receber milhões em indenização".
Ou "foi só um ano". As pessoas não percebem que dura sua vida toda.
Quando voltei ao Canadá [em 2003], enfrentar o inquérito, fazer campanha [para levar o assunto a debate] foi, muitas vezes, tortura maior do que o que passei na Síria.
Um ano, ok, termina. O resto continua. Os primeiros cinco anos foram um pesadelo, um pesadelo. A melhor forma de descrever é "inferno".
Não sei quando vai passar.
E o estrago que isso faz na sua reputação, você convive com ele todos os dias. Mesmo quando as coisas não têm base em fatos, psicologicamente, você está destruído, sempre vai ver o mundo dessa prisão que é ter sido acusado de terrorismo.
PRECONCEITO
As pessoas às vezes acham que, porque o inquérito provou que eu era inocente, posso apertar um botão e mudar de fase. Na real, eu também acreditava nisso, ingenuamente. Não é assim.
Vou ser honesto: a minha relação com as pessoas hoje é de amor e ódio.
Recebo apoio, mas são só palavras. Pensam duas vezes antes de me contratar. Dói. Sempre me identifiquei pelo meu trabalho, minha carreira era meio mundo para mim.
No começo, vivemos de assistência social -algo humilhante para um casal que estudou. Depois, minha mulher arrumou um emprego.
Já eu perdi a esperança, apesar de ter qualificações, apesar de minha área [engenharia de comunicação] estar em expansão. Decidi voltar a estudar. Acabei o doutorado há um ano e meio.
Mas não quero mergulhar na depressão de procurar emprego de novo. Por ora, com a indenização, a gente se vira. Toda vez que eu era rejeitado, ficava mal, sem comer, sem dormir, sem falar. Não gosto nem de lembrar.
É isso que a minha vida virou. A minha, da minha mulher, dos meus filhos.
Recebi um pedido de desculpas do governo canadense, mas nunca do americano. E nunca houve uma acusação formal contra mim.
No ano passado, comecei uma revista [sobre segurança e direitos civis], a "Prism".
Não culpo os ativistas por estarem descrentes. O trabalho deles na última década foi enorme, e as mudanças parecem tão pequenas, mesmo sob [Barack] Obama.
Mas eu acredito em pessoas, não em governos. Quem diria, um ano atrás, que a população no Oriente Médio ia se levantar?
Esquecem que ditaduras não nascem da noite para o dia. Somos nós que temos de fazer valer nossos direitos.
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