domingo, 22 de janeiro de 2012

Testemunho - Renée de Carvalho, 86 anos


Uma vida de resistência

Viúva do ativista político Apolônio de Carvalho relembra a trajetória de lutas contra a opressão

CLAUDIA ANTUNES
DO RIO

RESUMO

"Aqui morou Apolônio de Carvalho, combatente da liberdade." A placa no portão do prédio no Leblon, homenagem de vizinhos, leva ao apartamento de Renée de Carvalho, militante da Resistência francesa ao nazismo. Renée, 86, dividiu 62 anos de vida com Apolônio (1912-2005) -militar que aderiu à Aliança Libertadora Nacional nos anos 1930, combateu na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), lutou na Resistência, foi guerrilheiro no Brasil e fundador do PT. Em fevereiro, quando ele completaria 100 anos (dia 9), Renée e os filhos René e Raul doarão documentos e fotos ao Arquivo Nacional, no Rio. Ela lançará um livro com sua história, resumida aqui.


Nasci em 1925 em Marselha. Meu avô materno era carpinteiro da Marinha mercante. O paterno vendia tabaco e selos. Era um "radical" na política, um pouquinho de esquerda, anticlerical.

Meu pai, Louis Laugery, lutou quatro anos na Primeira Guerra e depois foi mandado combater os soviéticos. Quando voltou, se casou com minha mãe, Juliette. A guerra parecia uma coisa longe para nós, até que veio a crise de 1929 e a vida ficou difícil.

Havia desemprego e, em toda Europa, a ascensão do fascismo. Em Marselha, a política era dominada pela máfia, e os comunistas apareceram com propostas novas.

Meu pai entrou no PC e toda a família foi junto. A gente discutia política à mesa, tipo família italiana. Em 1936, veio o governo da Frente Popular [coalizão comunista-socialista-radical] e o entusiasmo contagiava as crianças.

No fundo de casa havia uma fábrica onde moças trabalhavam costurando sacos. Elas entraram em greve e não dormiam, dançavam a noite toda. A vizinhança toda xingava, e nós ficávamos na janela felizes da vida. Eu e meu irmão, Daniel, íamos coletar dinheiro para os grevistas.

A Frente Popular perdeu fôlego porque seguia a Inglaterra nas concessões aos alemães. Veio o pacto germano-soviético e muita gente deixou o PC porque não entendia como Hitler e os comunistas podiam estar juntos.

A França perdeu a guerra de maneira vergonhosa. Pessoas da zona de ocupação alemã, no norte, vinham para o sul a pé, de charrete. O sul ficou com o [marechal Philippe] Pétain, que colaborava com os alemães.

A maioria dos resistentes presos foi capturada pela polícia francesa, não pela Gestapo. Minha irmã, Paulette, foi presa em 1942 e acabou deportada para a Alemanha. Só voltou no fim da guerra.

Eu e meu irmão éramos agentes de ligação da Resistência. Abrigávamos pessoas, transportávamos material militar, panfletos. Como judeus não podiam pegar tíquetes de racionamento, negociávamos tíquetes para eles.

Conheci o Apolônio e fomos morar juntos em 1943. Eu tinha só 18 anos.

BRASIL, CINEMA E GOLPE

Vir ao Brasil depois da guerra não foi uma coisa alegre. Não falava português, já tinha um filho pequeno e esperava outro. Logo o PC foi posto na clandestinidade. Não passávamos mais de seis meses em uma casa.

Fomos três ou quatro vezes ver filmes franceses. O companheiro que vivia conosco, João Amazonas [depois fundador do PC do B] dizia: "Tomo conta dos meninos". Mas nos sentíamos tão culpados...

Em 1954, Apolônio foi mandado estudar na URSS. Depois me juntei a ele e os meninos ficaram com minha família na França. Só voltamos no governo Juscelino.

O Apolônio desapareceu na clandestinidade no mesmo dia do golpe de 1964. Já estava insatisfeito com a política do PC, tinha perdido o entusiasmo juvenil. Sempre foi muito independente. Os franceses são propensos a pensar com a própria cabeça e acho que o ajudei.

Em 1967, ele tomou o rumo do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). Eu precisava me sustentar e trabalhava na Embaixada da Hungria. Me preparava para me juntar à clandestinidade quando ele e meus filhos foram presos, em 1970.

Apolônio foi trocado pelo embaixador alemão [sequestrado pela guerrilha] e foi para a Argélia. René foi trocado pelo cônsul da Suíça. Raul passou três anos na cadeia, e fiquei aqui até ele sair.

Apolônio queria ir para a França, mas o país não quis recebê-lo. Só depois conseguiu. Me juntei a ele e, antes da Anistia, já começamos a conhecer o PT. Fiquei entusiasmada porque o PC sempre quis ser um partido de massa, mas não conseguiu, e o PT já nasceu de massa.

Depois não foi bem assim, o partido se institucionalizou, o Apolônio não gostou muito de certas coisas, mas continuou ligado ao PT.

Quando voltamos, ele recebia uma pensão de segundo tenente [posição de quando foi expulso do Exército, em 1936]. Só depois foi reconhecido como coronel.

Fui muito feliz com o Apolônio. Nos queríamos muito. Se tivesse que fazer, começaria tudo de novo.

Veja fotos e documentos doados ao Arquivo Nacional
folha.com/no1037480

Leia a íntegra do depoimento
folha.com/no1037599

Fonte: Folha de São Paulo (22/01/2012)


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