Saramago e Pilar, um amor oceânico
"ZÉ SARAMAGO NO ERA UN NIÑO VAGO
JUGABA SOLO NO CON LOS DEMÁS
Y CON EL TIEMPO SE VOLVIÓ UN GRAN MAGO
QUE HACE QUE PENSEMOS MÁS"
Estas palavras, cantadas no México por Sofía Álvarez, grande atriz e contista, diante de cerca de duas mil crianças, foram o momento mágico do ano. Perguntava Sofía como era Saramago, e as crianças respondiam que era "um mago que nos pôs a pensar". Os miúdos, que haviam visto a curta-metragem "A Maior Flor doMundo" e lido "O Conto da Ilha Desconhecida", estavam no grande auditório convidados pela Feira do Livro de Guadalajara, que também realizou sessões especiais sobre o escritor português e apresentou um livro onde homens e mulheres de letras elegeram o seu Saramago preferido e explicaram as razões da sua opção. "Porque soa bendito, como o mar", disse Ángeles Mastretta, que partilhava páginas com escritores dos dois lados do oceano. Era novembro, era México, era a feira que Saramago tanto visitou que o recordava com esmero. Como já tinham feito outros países.
O primeiro ano sem Saramago começou às 11h30 do dia 18 de junho de 2010, quando os médicos Gracia Lanzas e Domingo Guzmán se olharam e ela, após um leve assentimento do companheiro, pronunciou as palavras que ninguém na casa queria ouvir: "Hora da morte, 11h30." Aí começou a vida sem Saramago, embora Saramago continuasse a ser o centro de todos os passos, de todas as palavras e de todos os abraços, o centro do mundo para aqueles que já nada podiam fazer, nem acrescentar uma palavra, nem mostrar o sorriso que ficou adiado, nem sentir o apertar de mãos, gesto impossível. Saramago havia morrido, e essa palavra - morte - é definitiva.
Nesse dia, a essa hora, começou também uma viagem diferente para os que haviam convivido com Saramago, mas, apesar do terrível peso da realidade, que esmaga, e de que maneira, os que rodeavam Saramago levantaram a cabeça, deixaram que as lágrimas corressem por dentro e fizeram o que estava combinado: viver também pelo ausente, tê-lo sempre no coração, no sangue, nos livros, nas conversas e nos brindes. Não morrerá de todo quem está tão presente namemória, disseram-se mutuamente e começaram a contar o tempo.
Um ano já sem Saramago. Como é possível, perguntar-se-ão alguns, se continua a publicar livros, se está nas conversas dos analistas políticos, se os jovens saem à rua com as suas frases escritas em cartazes ou em t-shirts, se há concertos de rock onde o aplaudem ou se organizam outros de música erudita em seu nome? Que estranha ausência é essa? Mas é estranha apenas para quem não compreendera o espírito transgressor de José Saramago, homem tímido e retraído, que, no entanto, era audaz nas suas abordagens vitais, literárias e intelectuais, destemido até, que nunca baixou a cabeça, que sempre seguiu o seu caminho sem se preocupar com costumes ou modas, sem medir as consequências cias dos seus atos desde que estes não afetassem terceiros, porque o respeito pelo outro, tratando-se de Saramago, era um dado adquirido. Sim, era um transgressor de todas as normas e convenções, por isso também o seu funeral seria diferente, porque diferente foi a sua vida.
O avião que transladaria o corpo de José Saramago chegou a Lanzarote perto da meia-noite do dia 18 para sair no dia seguinte de manhã, já com a sua carga singular, o caixão e os amigos mais próximos do escritor. Para se despedirem dele, a Fundação César Manrique convidou os ilhéus a que deixassem as suas casas e o trabalho, descessem à rua e lessem em voz alta fragmentos dos livros que Saramago escreveu em Lanzarote, de modo a que a última saída da ilha fosse acompanhada pelo eco da sua voz. Depois, quando o avião aterrou em Lisboa, outra surpresa aconteceu: pessoas erguendo livros, levantando-os do chão como Saramago havia levantado a vida de tantas pessoas humildes nas suas diversas ficções e, sobretudo, na sua escolha dileta. Após a cerimónia na Câmara Municipal, o cortejo partiu para o cemitério. Ali foi o adeus definitivo: um grupo de pessoas dentro da sala do crematório celebrou o facto de ter partilhado a intimidade de um homem grande, enquanto lá fora havia um mar de livros e de cravos vermelhos, dois símbolos que engrandecem quem homenageia e quem é homenageado.
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Boa pergunta, como é que se convive com a saudade? D.
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