segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A (outra) cara da crise - Somália, tragédia esquecida

Criança somali grita de dor: quem está disposto a ouvir seu lamento?


A Folha de São Paulo da última sexta-feira (05) publicou a foto acima na primeira página. A principal manchete remetia ao agravamento da crise financeira internacional: "Bolsas desabam e cresce medo de recessão mundial". Mas, en vez de mostrar o tumulto na Bolsa de Nova York com seus engravatados operadores, o jornal paulista resolveu lembrar que 29 mil crianças na Somália já morreram de fome nos últimos 90 dias. Mais de 10 milhões de seres humanos estão ameaçados nessa região conhecida como Chifre da África.
Dois fatos aparentemente desconectados, na verdade duas faces de uma mesma moeda. O capitalismo que torra trilhões no altar do onipotente mercado é o mesmo que deixa perecer milhões de pessoas - homens, mulheres, crianças - quando uma pequena parcela do que é drenado para preservar os lucros da plutocracia financeira internacional já seria suficiente para salvá-las da morte certa.
O pensamento crítico, muito embora boicotado pela grande mídia, permanece vivo e floresce nas lutas sindicais e da juventude em todo o mundo. E sempre há quem se mantenha humano, o que significa preservar a capacidade de indignação diante dessa barbárie que parece não ter fim.
Vale a pena ler, neste sentido, a crônica do jornalista Fernando de Barros e Silva, também publicado na Folha, no sábado (06):

"We Are the World"

SÃO PAULO - "Bolsas desabam e cresce medo de recessão mundial"; "Dilma tira Jobim da Defesa e põe o ex-chanceler Amorim". Eram esses os destaques da Primeira Página da Folha ontem, um dia cheio de notícias. Mas nada rivalizava com a foto da criança somali desnutrida.
O olhar aflito, de dor e pânico; a boca escancarada, em desespero; os cabelos ralos, os sulcos no rosto e a pele enrugada, como se o corpo tivesse 90 anos; os pés retorcidos, as mãos e a cabeça desproporcionais, a deformidade do conjunto -tudo choca naquela figura que definha a caminho da morte.
Estima-se que 29 mil crianças com menos de cinco anos morreram de fome na Somália nos últimos três meses (média de 10 mil por mês). Haveria, segundo a ONU, 640 mil crianças desnutridas no país.
As estatísticas dão a dimensão da tragédia, ao mesmo tempo em que a desumanizam. Seriam 10 milhões de pessoas passando fome, literalmente e em graus variados, em função da pior seca em décadas na região onde estão Etiópia, Quênia, Djibuti e Somália, o mais atingido.
No Brasil, Somália virou apelido de alguns jogadores de futebol, pretos e esguios. Na África, é um lugar tão miserável e caótico que está fora do ranking de IDH da ONU -no qual a Etiópia ocupa o 157º lugar, num total de 169 nações.
No final dos anos 1960, durante a Guerra da Biafra, na Nigéria, a TV flagrou pela primeira vez imagens de mortes em massa provocadas pela fome. Mas foi nos anos 1980, com a crise na Etiópia, que a nata do mundo artístico se mobilizou e quis dar dimensão global à tragédia -época do "We Are the World".
E hoje? A Somália é um território sem governo central há 20 anos, controlado por milícias e grupos islâmicos extremistas, devastado pela miséria e pela anomia social. Um lugar em que Bolsas, recessão, ministros, governo e notícias de jornal não significam nada. Mas o que significa para nós a imagem da criança agonizante? Nós somos o mundo, mas a Somália está fora dele.


Foto: Folha de São Paulo

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