sexta-feira, 18 de junho de 2010

Adeus Saramago,

por Georgina Tolosa Galvão

Dia triste. Estou em um luto particular. O mundo perdeu Saramago.

Me sinto de luto como imagino que milhares o estão sentindo pelo mundo.

José Saramago, não é exagero dizer, faz parte cotidianamente dos meus últimos vinte anos, quando tomei contato com o meu preferido de seus livros “O Memorial do Convento”, embora goste de tudo que ele escreveu.

No ano seguinte, natal de 2001, o ganhei de presente de minha amiga Sandra Helena Cruz, que deve estar compartilhando estes sentimentos. Depois desse, ganhei de presente vários outros livros de amigos queridíssimos e amores.

Creio que em 1990 (bem antes de ganhar o Nobel) o assisti em um programa de entrevistas num canal de TV, onde ele falava sobre a crítica ao seu livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e me chamaram atenção os comentários que ele fazia sobre alguns personagens, em especial, José e Maria, os pais de Jesus onde colocava ênfase sobre Maria e à desigualdade atribuída às mulheres. Aliás, em seus romances, a narrativa em regra, se dá pelo olhar das mulheres.

Mais tarde, ao ler o referido romance, pude conferir. Em síntese, Saramago concluía que em Maria não cabiam qualificativos como “justa e boa”, tal qual José, conhecido homem justo e bom. Não por culpa sua (de Maria), simplesmente porque “justo e bom” não tinham tradução para o feminino, no léxico da época.

Do que tem publicado no Brasil, já li bastante e tudo tem sido uma grande fonte de inspiração, mesmo nos seus momentos mais cáusticos e impacientes, diante da mais que desigual sociedade contemporânea. Jamais deixava de opinar sobre os acontecimentos definidores da sociedade atual, sempre do ponto de vista da maioria excluída em todos os cantos do mundo. Afirmava categoricamente que os ricos mandam e os pobres vivem como podem.

Não deixava também de se manifestar de forma contundente, como por exemplo, através de sua decisão de morar na ilha calcárea de Lanzarote, de alguma forma como protesto ao status quo da sociedade portuguesa, sua pátria originária.
Escrevo sem pretensão e sem talento literário, apenas para expressar minha emoção por um ser tão representativo do povo. Alguém que só aprendeu a ler e pode freqüentar a escola, já quase na idade adulta, mas que acessou a saltos largos o conhecimento produzido pela humanidade, com particular agudeza, até formar seu próprio repertório, crítico, que segundo os expertos revolucionou a literatura do século XX e do presente, dando enorme contribuição tanto através do texto ficcional, quanto simplesmente emitindo opinião, a todos aqueles que neste imenso e complexo mundo contemporâneo, se preocupam com transformações sociais, econômicas, políticas, pensantes, de estilo, éticas e tudo o mais que liberte o povo daqui e de alhures, da ignorância, da miséria material e da falta de dignidade.

Em momentos de encruzilhadas afetivas, esses, que a vida nos apresenta a todo momento, sempre encontrei alguma inspiração em Saramago, como no romance “ A Caverna”. Uma de suas personagens nos fala do amor entre parceiros que se escolhem: “(...) fica, enquanto não fores. Será sempre tempo de partires.”

Sempre me senti muito comovida pelo singelo e profundo amor que devotava à sua Pilar, essa mulher espanhola que deve ser muito especial, merecedora de tão singular amor, num tempo de tanta descrença no outro, de tanto individualismo.

Hoje, quando meu queridíssimo amigo Aldenor Jr. deu a notícia da morte de Saramago, não contive as lágrimas como não as contenho agora. Ele tentou me consolar à sua maneira emocionantemente racional: “um dia isso ia acontecer, não somos eternos”. É verdade. Embora saibamos disso sobre todos os nossos entes queridos, é parte de nossa humanidade, a profunda tristeza que sentimos diante das perdas. Para mim, Saramago era um ente querido.

Faz tempo que tencionava enviar uma carta para ele falando da minha admiração por seu pensamento. Imaginava contar para ele que no norte do Brasil, no Pará, ele tem admiradores que como ele, dedicam sua vida à luta pelo justo para todos, com as armas que dispõem.

Devaneei muitas vezes em ver o Edmilson Governador de nosso Estado, para ter a possibilidade de tentar convencê-lo ( a ele, Saramago, dado que quase não aceitava convites para viagens) a conhecer nossa Região, nossa cidade e as singularidades e similitudes, partes da herança cultural que nos aproxima, além de partilhar dos debates atuais.

Persistentes em nossas conquistas políticas, vitoriosos, poderemos ter nossos lutadores na próxima Legislatura Estadual e então poderemos fazer uma bela homenagem post – mortem, a tão grande existência.

Em momentos de grande comoção, revisitamos momentos importantes de nossa existência. Lembrei que quando foi lançado o romance “ A Caverna”, meu filho João Pedro (hoje com 14 anos) estava aprendendo a ler, mal sabia formar as sílabas. Eu estava lendo e ele ficou do meu lado, sempre curioso sobre o que eu lia, olhando a capa e tentando soletrar. De repente, completou: “José Saramagro”. Hoje ele ficou todo solidário comigo, porque sabe da grande importância que dedico a esse escritor.

Para mim, seus escritos tem muito sonho de transcendência a patamares humanizantes da civilização atual. Particularmente, adoro a metáfora expressa no personagem que queria inventar a máquina voadora em “ O Memorial do Convento”: “(...) e, em tantas noites passadas, uma terá havido, pelo menos, em que sonharam o mesmo sonho, viram a máquina de voar batendo as asas, viram o sol explodindo em luz maior, e o âmbar atraindo o éter, o éter atraindo o íman, o íman atraindo o ferro, todas as coisas se atraem entre si, a questão é saber colocá-las na ordem justa, e então se quebrará a ordem, (...)”.

Que venham as biografias, acertadas ou manipuladoras, o que importa é seu legado. Espero pelo que diriam Montálban, Benedetti, Reminguay (in memorian), Mia Couto, Gabriel Garcia Marques, Galeano, Chomsky, os brasileiros que valem a pena ler e tantos outros que, certamente terão o que dizer.

De resto, é como ele próprio definia: "(...) um fato é o que cada dia traz, outro fato é o que nós por nós próprios, lhe levamos a ele, a véspera é o que trazemos a cada dia que vamos vivendo, depois velho amigo. como sempre, o futuro."

Com todos compartilho este momento de profunda emoção.

Georgina Tolosa Galvão
Brasília, 18 de Junho de 2010

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